“Sara sara sara.
Minha santa padroeira é Santa Sara.”
Mês de maio é um dos meses dedicados a louvar essa nossa santa poderosa, protetora, Santa Sara. E é por agradecimento em ter saradas muitas feridas por intermédio dela que, aceitando convite especialíssimo da Carol, tentarei repartir um pouco do que vejo sobre ela e o povo que a louva, meu querido povo gitano.
Há muito mistério em torno da história de Santa Sara, mas a versão mais comum fala de uma mulher negra que, valendo-se de véus, salvou Maria e alguns apóstolos entre as ondas revoltosas da maré. Como alegoria, a maré, o barco, Maria e todas as ferramentas ciganas carregam muito significado.
Padroeira da gravidez problemática, Santa Sara protege também o nascimento em partos difíceis, daí envolverem em tecidos os pertences da mãe ou da criança que vai nascer e colocar nela o nome de Sara ou de um dos apóstolos envolvidos no episódio da barca. Colocar sobre as coisas da criança e da mãe um pedaço de tecido seria o mesmo que cobrir a delicadeza do nascer com outro ventre. Santa Sara aglutina várias referências à maternidade. Maria representaria, pela história, nós mesmos, homens e mulheres que carregamos no coração a possibilidade de salvar o mundo de seu sofrimento, navegando pela intempérie de viver num mundo turbulento, agitado, onde expiamos para crescer. E essa maneira de lidar com a dor tem no povo cigano sentido especial.
Enquanto os gregos falavam em musas que intuíam, assopravam o que o artista faria, fosse ele escultor, poeta, músico, para o povo cigano, especialmente aqueles de origem andaluz, não é disso que nasce a arte. Para eles, o artista verdadeiro é aquele que tem e luta contra seu duende.
Duende é palavra que carrega inúmeros significados entre a cultura cigana, mas, se tentarmos reduzir aqui para explicar, duende seria um profundo incômodo, quase subterrâneo com o qual o artista briga para fazer seu trabalho artístico. E, estando ele tomado por esse duende, o espectador não pode e nem consegue pensar em outra coisa que não seja sua performance. Traço típico da dança flamenca, por exemplo. Fazer arte, então é, mais que isso, viver, então, é produzir beleza através da própria dor, da dor de ser, da dor dos ancestrais.
O soar das castanholas é outro símbolo importante. As ciganas subiam nas mesas para tocá-las bem alto quando havia invasores entre a caravana querendo atacar seu povo de alguma forma. Seduzidos pela dança, pelo som, não percebiam a fuga sorrateira do povo que queriam maltratar. E a figura cigana carrega em si nossa capacidade de mudar, nosso habitar temporário no mundo e nas situações que vivemos e a passagem breve de todas as coisas, a fugacidade.
Se sou cigano, vejo que os amores, o sofrimento, a alegria, os sabores, os trabalhos, os desentendimentos, a vida e a morte levadas em volta da fogueira não duram mais que o crepitar da última lenha na lareira, daí realçar ou atenuar seu devido valor. Não estabelecer moradia fixa é a aprendizagem de lidar com a extrema instabilidade da vida. Mas os ciganos dançam, bebem, fazem orações e aproveitam, como ninguém, sorrindo, a festividade de cada momento que é único e jamais se repetirá. E é por isso que nós, aprendendo com eles, devemos em maio, sair em romaria louvando La Gitana (como a chamam os Rom, família cigana, em Campinas) cantando em roda, mãos dadas, para pedir que sejamos a liberdade e a força que a gente carrega.
João Pires
PS: Iconografia gentilmente cedida pelo autor, incluindo, a belíssima sugestão do vídeo abaixo… Optchá!
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